Em se tratando de órgãos públicos, não é raro nos depararmos, no dia a dia da advocacia (de forma direta ou pelos relatos dos clientes), com um certo excesso de zelo por parte de alguns servidores.
Movidos por receio ou por motivos diversos, como o desconhecimento da lei, por exemplo, alguns agentes acabam exigindo, como condição para a prestação dos serviços, a entrega de documentos desnecessários, sem amparo legal.
Muitas vezes, o próprio ente público, em suas normas e regulamentos, estabelece essas exigências contrárias à lei.
A prática burocrática, profundamente enraizada em alguns órgãos, por vezes impede os servidores de agirem de acordo com as legislações mais recentes, que cada vez mais, vêm se colocando como solução para a desburocratização e maior eficiência do serviço público.
Um ótimo exemplo disso é a Lei no 13.726, de 8 de outubro de 2018, que, dentre outras coisas, proibiu que os entes públicos exijam reconhecimento de firma nos documentos entregues pelos cidadãos.
A transferência de veículos após a Busca e Apreensão
O Decreto-Lei no 911/1969, que trata da alienação fiduciária, assim estabelece:
“Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.
§ 1o Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária.”
Segundo disposto, a propriedade e posse do bem no patrimônio do credor consolida-se passados 5 dias da apreensão, sem que o devedor fiduciante pague a dívida.
Nota-se um caráter satisfativo atribuído pelo legislador, à Decisão Liminar de Busca e Apreensão, deferida com base no Decreto-Lei 911.
Apesar disso, alguns DETRANs têm exigido, como condição para procederem à transferência do bem, a exibição da Sentença que confirma a Liminar e da respectiva certidão de trânsito em julgado.
Ora, o Decreto é claro ao dispensar a confirmação da Liminar por Sentença, determinando que o órgão de trânsito proceda à transferência do veículo após a fluência do prazo de 5 dias da execução da Liminar.
Portanto, para o cumprimento da Lei, basta: 1) O cumprimento do mandado de Busca e Apreensão do veículo alienado; e 2) A fluência do prazo estabelecido no § 1o, do artigo 3o antes citado.
Feita a transferência do bem, que nada mais é do que o registro de algo que já foi consolidado no mundo jurídico (posse e propriedade do bem ao credor), cabe ao órgão de trânsito expedir novo certificado de registro de propriedade, livre do ônus antes gravado sobre o bem – tudo isso em estrito cumprimento da Lei.
Consequências Jurídicas
A Lei de Abuso de Autoridade (Lei no 13.869, de 5 de setembro de 2019) trouxe 15 novos tipos penais para enquadrar e penalizar condutas de agentes públicos como abuso de autoridade.
Dentre esses novos tipos, está o artigo 33:
“Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.
Trata-se de tipo penal aberto, que abarca qualquer exigência feita pelo servidor público ao cidadão, que não tenha expressa previsão legal.
A tipificação, da forma como foi feita, vem ao encontro do princípio norteador de toda a atividade administrativa: a Legalidade.
O princípio constitucional da Legalidade é impositivo a toda a Administração Pública, em seus mais diversos níveis e significa que os agentes públicos só podem fazer aquilo que a lei permite expressamente. Qualquer ato administrativo que não esteja em conformidade com a legislação é considerado ilegal, sobretudo quando esse ato exigir uma conduta do administrado, sem a qual o seu direito não será atendido.
Ainda que não haja negativa expressa e por escrito, a recusa à transferência do veículo ao credor, após consolidada a posse e à propriedade, nos termos da Lei, configura crime de abuso de autoridade, estando o agente sujeito à pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa, sem prejuízo das sanções administrativas correspondentes.
Como Provar a Negativa
É bastante frequente a negativa verbal de atendimento às solicitações. Por vezes, até mesmo o protocolo das petições dirigidas ao órgão de trânsito é negado no balcão de atendimento e isso gera o seguinte questionamento: como provar que o agente me fez uma exigência sem amparo legal?
Nesses casos, é possível fazer prova através da lavratura de uma ata notarial de constatação in loco. Ou seja: após ter negado o protocolo de seu pedido, de forma verbal, o cidadão deverá solicitar ao tabelião que compareça ao balcão de atendimento, onde o pedido de protocolo será novamente formulado e essa recusa verbal será relatada pelo tabelião em uma ata notarial, que, por sua fé pública, tem força probante em processos administrativos, cíveis e criminais.
Como se vê, é possível provar que houve negativa de atendimento, ainda que essa negativa seja verbal, pelo agente público. E na maioria das vezes, ao ser informado dessa possibilidade, o agente tende a fazer o protocolo da petição e se orientar melhor quanto à forma de atender esse cidadão.
Conclusão
A desburocratização é algo relativamente recente no Brasil. Em muitos estados da federação, o próprio órgão de trânsito possui instruções normativas contrárias à legislação pátria, o que deve ser combatido pela Advocacia.
Também não são raros os casos em que essas exigências sequer têm amparo normativo, vindo, muitas vezes, do receio que tem o servidor, de fazer algo contrário ao direito ou que possa lhe prejudicar, de alguma forma.
Tudo isso reforça, mais uma vez, a necessidade de se criar uma cultura e um ambiente de eficiência do serviço público, informando à população em geral sobre os seus direitos e sobre as melhores formas de fazer valer esses direitos.
Por fim, mesmo em se tratando de requerimento extrajudicial, que em tese poderia ser feito por qualquer pessoa, é aconselhável a assessoria de um Advogado, evitando, assim o cerceamento de Direitos e assegurando a possibilidade de punição, caso o cidadão seja lesado, de alguma forma.