Um dos grandes entraves encontrados pelo Credor, em processos de Execução é a impenhorabilidade.
Isso porque, embora o objetivo da execução seja garantir a satisfação do crédito, ela também deve respeitar as garantias e direitos do devedor, conforme disposto na legislação. A execução deve ser eficiente para atender o credor, mas não pode violar os limites e direitos estabelecidos em lei, como a impenhorabilidade de certos bens.
Ao dizer que a execução se realiza “no interesse do credor”, o artigo 797 do CPC não afasta a necessidade de se respeitar essas limitações, também impostas pelo legislador.
Porém, a linha entre a proteção da dignidade do devedor e a eficácia da Execução é tênue, principalmente em se tratando da penhora de dinheiro e a proibição existente no artigo 833, IV, do CPC.
1 – O que diz a Legislação
A Constituição Federal não trata diretamente do conceito de impenhorabilidade em um único artigo, trazendo de forma expressa, apenas a impenhorabilidade de pequenas propriedades rurais, usadas pela família para sua subsistência, desde que não sejam objeto de garantias de dívidas (artigo 5º, inciso XXVI).
Apesar de não trazer uma lista detalhada de bens impenhoráveis, a Constituição estabelece princípios que embasam essa proteção. O principal deles, que norteia a legislação infraconstitucional e também a Jurisprudência, é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, inciso III,da CF/88).
É visível a utilização desse princípio pelos Julgadores, para nortear decisões referentes à impenhorabilidade dos salários. Porém, o que se vê, atualmente, – ao menos na maioria dos casos – não é uma proteção integral, mas sim uma proteção mitigada pela necessidade de se garantir, também, a dignidade do credor.
O Código de Processo Civil, ao tratar da penhora, assim dispõe:
“Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
[…]
§ 1º É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.”
Apesar de ordenar como prioridade a penhora de valores em dinheiro, a mesma legislação também diz o seguinte:
“Art. 833. São impenhoráveis:
[…]
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;”
De um lado, há uma preferência legal pela penhora de valores e, de outro, há proibição expressa de se penhorar os frutos do trabalho ou da aposentadoria do devedor que, seriam, em tese, as principais fontes utilizadas por ele para quitar as obrigações que assumiu, a menos que haja outras fontes de renda.
A única resposta para essa contradição é que o legislador quis evitar a penhora de 100% do que o devedor ganha, pois comprometeria a sua subsistência.
Ocorre que o legislador não tratou de trazer um limite a ser observado, optando por proibir a penhora desses valores, trazendo como ressalva apenas: 1) a possibilidade de penhora para o pagamento de prestação alimentícia; ou 2) para dívida não alimentar, a possibilidade de penhora, quando os valores recebidos pelo devedor excederem a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, que hoje equivalem a R$ 70.600,00 (setenta mil e seiscentos reais).
Levando-se em consideração o que foi legalmente previsto, seria praticamente impossível obter a penhora de salários e aposentadorias, para dívida não alimentar.
2 – A Jurisprudência
Tanto a execução quanto o cumprimento de sentença têm como objetivo a satisfação de crédito já reconhecido, motivo pelo qual a impenhorabilidade não deve ser regra e sim exceção, prevista em lei para assegurar a menor onerosidade ao devedor, o que, em linhas gerais, significa a manutenção da sua subsistência e dignidade.
Foi nesse sentido que se desenvolveram as teses hoje aceitas pelos Tribunais.
Em julgamento concluído em 2018, no Recurso Especial n. 1.582.475/MG, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes (EREsp 1.582.475/MG, relator Ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, julgado em 3/10/2018, REPDJe 19/3/2019, DJe 16/10/2018).
Apesar de não ter definido critérios objetivos a respeito do que seria considerado o mínimo a ser resguardado pela impenhorabilidade, o STJ passou longe do limite de 50 salários mínimos fixados pela legislação processual, pois tal valor foge muito do que pode ser incluído no conceito de “percentual capaz de garantir a dignidade do devedor e de sua família”.
Desde então, o julgado vem se repetindo nos seguintes termos:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. PENHORA DE PERCENTUAL DO SALÁRIO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE DIVERGÊNCIA. 1. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família. Precedentes. (STJ – AgInt nos EREsp: 1934570 SP 2021/0121495-7, Relator: NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 02/05/2023, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 04/05/2023).”
Mas qual seria, então, o percentual adequado para manter a dignidade do devedor? Essa resposta deve variar de acordo com as hipóteses.
Em decisões recentes, em processos patrocinados pelo nosso escritório, obtivemos penhoras que giram em torno de 10 a 30% dos salários/aposentadorias:
“A regra geral é que os subsídios são impenhoráveis. […]
Todavia, excepcionalmente, admite-se a penhora do salário nas hipóteses do §2 do artigo 833, do Código de Processo Civil e, atualmente, conforme orientação do Superior Tribunal de Justiça proferida nos Embargos de Divergência em REsp nº 1.582.475/MG, quando for preservado percentual de tal verba capaz de manter a dignidade e a subsistência do devedor e de sua família.
No presente caso, já foram realizadas buscas de bens no intuito de satisfazer a obrigação do credor, todavia restaram infrutíferas.
Assim, considerando que os meios para eventual satisfação da dívida igualmente restaram frustrados, se torna devida, agora, como medida excepcionalíssima, a penhora parcial de sua verba salarial.
Entretanto, por cautela, de modo a evitar qualquer risco à sobrevivência do executado e sua família, entendo que o bloqueio fixado deve ser no importe de 20% (vinte por cento) sobre cada remuneração líquida mensal.
Oficie-se à empregadora do executado, para proceder a penhora de 20% (vinte por cento) do salário líquido do executado, devendo transferir tais valores em conta vinculada a este processo, bem como, comprovar nos autos” (Processo n. 0002076-21.2022.8.16.0158 – TJPR).
Em algumas decisões, a terminologia utilizada para a garantia da dignidade é a do “mínimo existencial”, levando à conclusão de que esses percentuais hoje admitidos pela maioria dos tribunais têm sido bem tímidos:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ART. 833, IV, CPC. SALÁRIO. IMPENHORABILIDADE. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE DE PENHORA. SUBSISTÊNCIA E DIGNIDADE. EFETIVIDADE DO PROCESSO. BOA-FÉ. POSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DO PRÓPRIO SUSTENTO. REVISÃO. SÚMULA N. 7/STJ. 1. É possível a penhora de parcela do salário do devedor, ainda que fora das hipóteses estritas descritas no art. 833, § 2º, CPC, desde que não afete o mínimo existencial e a possibilidade de sustento do executado. Precedente da Corte Especial. 2. A norma deve ser interpretada de forma teleológica: objetiva-se ponderar a subsistência e a dignidade do devedor com o direito do credor a receber o seu crédito. 3. Se, de um lado, os princípios da menor onerosidade e da dignidade da pessoa humana visam a impedir a execução abusiva, por outro lado vale lembrar que também cabe à parte executada agir de acordo com os princípios da boa-fé processual, da cooperação e da efetividade do processo. 4. No caso, o entendimento adotado pelo Tribunal de origem foi de que há possibilidade concreta de penhora, por não afetar a capacidade de subsistência do devedor. Revisão obstada pela incidência da Súmula n. 7/STJ.Agravo interno improvido. (STJ – AgInt no REsp: 2035636 PR 2022/0338995-0, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 25/09/2023, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/09/2023)”
Obviamente, esses percentuais fixados devem levar em consideração o montante da dívida e também os valores que o devedor recebe mensalmente.
Na prática, cabe ao Julgador ponderar a respeito do valor ideal a ser penhorado, de modo a garantir o básico ao devedor: a sua sobrevivência digna, considerando fatores como: os seus reais recebimentos mensais, as suas despesas básicas, a tentativa de penhora de outros bens, a colaboração do devedor em indicar bens penhoráveis, etc.
Conclusão
Em se tratando de mitigação das regras de impenhorabilidade, os avanços da jurisprudência ainda não chegaram ao que poderia ser considerado justo para o credor. Até porque, o paradoxo apontado no início do texto ainda é real: na grande maioria das vezes, os empréstimos (principalmente os pessoais) são tomados pelo devedor sob o planejamento de honrar as prestações com seus salários, os quais, em um cenário de inadimplência, são considerados legalmente impenhoráveis: um prato cheio para a irresponsabilidade!
Também não se pode afirmar que chegamos a um cenário ideal no que se refere aos percentuais de salário hoje aceitos pelos Tribunais como penhoráveis, até porque, existem Julgadores que, de tão cautelosos, acabam protegendo parcela maior, do salário do devedor, do que o suficiente para garantir o”mínimo existencial”.
De fato, ainda estamos caminhando para uma maior efetividade da Execução, mas já é possível afirmar que a proteção integral e irrestrita, vivenciada há alguns anos atrás, já não existe.
Além do avanço da Jurisprudência, hoje contamos com maiores possibilidades no campo da pesquisa patrimonial, resultando no afastamento de alegações como: de ser aquele o único salário obtido pelo devedor; quantias depositadas no banco, mas que não têm natureza salarial; não esgotamento das demais possibilidades de penhora, dentre outras alegações que hoje podem ser afastadas pela pesquisa e investigação patrimonial.
Embora ainda haja desafios e divergências quanto aos percentuais aplicáveis, é inegável que há um movimento gradual em direção a uma execução mais eficiente e equilibrada. A busca por um equilíbrio adequado entre a satisfação do crédito e a proteção da dignidade do devedor continua a ser um campo de debates e evolução no Judiciário.